Com mais de metade da minha vida percorrida, pelo menos a ordem natural assim o indica e mantendo a esperança de que virei a ter o estatuto de sénior, é fácil imaginar o número de pessoas que cruzaram o meu caminho. A verdade é que sempre pratiquei o desapego e por isso poucas são aquelas que estão comigo desde sempre. Muitas foram apenas passagens, momentos efémeros mas que, de uma forma ou outra, deixaram o seu cunho. Muitas outras vieram e foram. Algumas voltaram. Outras não voltei a ver. Algumas gostaria de rever. Crianças que hoje são mulheres e homens formados, casados, divorciados e com filhos. Algumas partiram e não virão mais, e dessas guardo apenas alegria e a saudade. Mas todas as que comigo se cruzaram deram-me oportunidade de aprender, absorver conhecimento e emoções, ou permitiram que lhes ensinasse, transmitisse sentimentos, experiências. Algumas nada acrescentaram, outras tantas usurparam-me. Umas deixaram marcas, outras cicatrizes. Outras encheram-me de amor e carinho, sorrisos e alegrias e fizeram de mim melhor pessoa. Algumas amei intensamente, outras quase odiei de morte. Fui amada, adorada, odiada, traída e mal tratada. Fui amiga, dei a alma e o coração, acarinhei e acolhi. Mas também maltratei, magoei, feri e disse adeus. Algumas nem me despedi. Algumas guardo no meu coração, outras apenas nos confins das minhas memórias. Houve pessoas que me preencheram, e houve pessoas que me esvaziaram. Algumas cresceram comigo, outras fizeram-me crescer, outras tantas vi crescer.
Na verdade a vida traça-nos caminhos que se entrecruzam. Coloca-nos inúmeras pessoas no nosso percurso, muitas vezes sem darmos conta do porquê. Mas todas elas têm a sua razão de ser e todas são únicas, especiais. E a todas elas estou grata, acima de tudo porque todas encerram em si verdadeiras lições de vida.
Fecho os olhos e sinto o teu respirar quente na minha pele húmida.
Fecho os olhos e oiço o teu sussurrar no meu ouvido. As tuas mãos percorrem-me o corpo vibrante e a tua língua aveludada embala-me numa doce melodia inebriante. O ímpeto do teu desejo liberta o meu corpo ardente. A ousadia das tuas palavras causa um delírio vertiginoso e os corpos fundem-se nas labaredas de um amor inacabado.
Embriagas-me as noites e a dança envolvente dos nossos corpos beija-me a alma.
A noite silencia-se. O tempo pára.
Abro os olhos. A pele inanimada arrefeceu mortificada pela distância que pisaste. A vontade de ti esvaneceu esmagada e sem vida por um amor que se apagou.
E em cada silêncio que te escrevo, despeço-me…de ti e de nós.
Estou-te grata. Sou-te grata. Começaste por me roubar o medo. Esse medo imenso. Esse fio condutor que me inflamava por dentro. E só por isso estou mais leve…se às vezes ainda espreito por cima do ombro? Sim, é verdade, mas não tremo. Se uma ou outra noite se prolonga? Também…Mas já suporto a escuridão. Se o coração me salta do peito? Mais do que me deveria permitir, mas aprendi a domá-lo. E tudo porque me levaste o medo. E por isso sou-te grata. Mas foste imprudente. Invadiste-me e assumiste-me como garantida e eu nem dei conta. Roubaste-me o meu espaço. E nunca questionaste o dia em que não estaria mais aqui. Mas a mim foi me dada a oportunidade e o privilégio de aprender. E hoje sei o que sou, sei onde estou e para onde quero ir...mas por enquanto estarei por aqui…não me acompanharás, e por isso, não vou ainda…quando for, vou sozinha e não voltarei a olhar para trás. E mais um ciclo se encerrará.
E quando as palavras dos outros tornam tudo mais claro? Quando numa pequena observação percebemos que nem todos os papéis foram herdados ou somente assumidos por nós, mas alimentados pela outra parte? A culpa esbate-se. O nosso erro é assumido, independentemente do outro lado conseguir fazê-lo, ou sequer detectá-lo, mas de uma forma responsável e sem qualquer tipo de manipulação emocional. Frequentemente colocamos a culpa nos outros, ou no meio em que vivemos. O trabalho não corre bem porque a equipa não colabora, os clientes fazem o que entendem porque a crise assim o permite. As coisas em casa correm mal porque ele/a nunca está, não ajuda com a casa ou com os miúdos, não quer trabalhar, não quer sair…Já para não falarmos nas vezes que acusamos a sorte de nos virar as costas e o azar de teimar em permanecer. Baseamos o nosso sofrimento nos outros. Ficamos isentos de qualquer responsabilidade e perdemos objectividade. Assumimos, muitas vezes sem dar conta, este papel de vítimas, despertando nos outros uma maior atenção e carinho mas também sentimentos de pena. Mas também há a outra face da moeda. Quando assumimos a culpa de tudo o que acontece à nossa volta. Trazemos até nós todas as responsabilidades ilibando os outros das acções praticadas. Por vezes são mecanismos de defesa, face à nossa impotência perante determinada situação. Quando assim é e porque de facto a situação deu origem a esta condição, o papel de vítima é passageiro e vai-se dissipando à medida que o problema se soluciona. No entanto, conflitos emocionais, ou momentos em que de algum modo nos sentimos ameaçados, levam-nos a assumir o papel de vítima como forma de sermos poupados pelos outros, contando com a sua compaixão e compreensão, assumindo-nos capazes de grandes sacrifícios pelos outros e reclamando o reconhecimento dos nossos actos. O reforço da vitimização ocorre muitas vezes quando nos faltam argumentos, anulando críticas e opiniões. Este tipo de manipulação emocional a dada altura, pode até parecer vantajoso, trazendo aparentemente mais benefícios do que problemas, uma vez que se alimenta de um público que na maioria das vezes se sente culpado e até insensível quando questiona as acções da vítima.
Qualquer um de nós, no decorrer da nossa vida e face a algum momento mais doloroso, pode assumir este papel. O importante é reconhecer quando o fazemos, porque o fazemos e como devemos ultrapassá-lo. Não permanecer demasiado tempo nesta posição, ser responsável e culpar menos, permitindo assim fechar o ciclo da experiência que o originou.
Numa das minhas longas noites, porque são sempre as noites, debrucei-me sobre o efeito espelho. Em todo este processo de autoconhecimento, percebi que a consciencialização do que estava errado, do que era necessário mudar, estava compreendida e aceite, mas o processo estava longe de terminado e as atitudes longe de se alterarem. Contudo, houve uma mudança. Repentina. Senti-a. Assumi-a. Mas confusamente, não foi apenas uma questão de vontade, ou de necessidade, nem sequer de desespero. Mas algo impulsionou uma nova atitude, e como sempre, para mim era fundamental compreender o porquê. E parei no efeito espelho. A forma como nos projectamos nos outros pode ser muito mais elucidativa do que podemos imaginar. Este mecanismo de projecção funciona como um espelho, cujo nosso reflexo é o outro. E quando nos apercebemos dos defeitos dos outros, que efectivamente nos incomodam, percebemos o quanto os nossos próprios defeitos podem incomodar e prejudicar os outros. Com esta projecção há uma parte de nós que se reflecte através das atitudes dos outros e percebemos que aquela foi também a nossa atitude, a nossa forma de estar e a nossa forma de enfrentar as mais diversas situações da nossa vida. “Percebemos nos outros as outras mil facetas de nós mesmos” (Carl Gustav). Muitas vezes recusamo-nos a vê-la, a aceitá-la, mas a verdade é que não a toleramos no outro…A dificuldade está, mais uma vez, em admiti-lo. Naturalmente, não vemos em nós aquilo que somos que nos incomoda ou nos desagrada nos outros, acima de tudo porque não somos totalmente honestos. Se conseguirmos olhar para nós próprios de uma forma isenta e sincera, sem qualquer tipo de julgamento ou censura, conseguiremos constatar que também nós já fomos como os outros. Por isso nos cruzamos tantas vezes com pessoas com as quais temos uma enorme empatia e outras que logo à partida nos causam um certo mau estar sem razão aparente. A verdade é que o nosso dia a dia nos envia inúmeras mensagens que nos permitem saber quem somos e como nos podemos tornar melhores pessoas, mas infelizmente permanecemos muitas vezes surdos e cegos, desperdiçando grande parte das oportunidades de aprendizagem que as pessoas que se cruzam connosco nos proporcionam.
“Os nossos melhores mestres são os nossos piores inimigos” (provérbio tibetano)